1.5.13

«Eu devia ter sido um ferro de duas garras/ A rasgar o fundo desses mares de silêncio.»


Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semidesertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hotéis baratos...
de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes "Qual será?"
Vem lá comigo fazer a tal visita.
(...)
A névoa amarela que esfrega as costas nas vidraças
O fumo amarelo que esfrega o focinho as vidraças
Passou a língua dentro dos recantos da noite,
Demorou-se nos charcos que ficam nas sarjetas,
Deixou cair nas costas a fuligem solta das chaminés,
Deslizou pelo terraço, de repente deu um salto,
E, ao ver serena aquela noite de Outubro,
Deu uma volta à casa, enroscou-se e dormiu.
(...)

Eu devia ter sido um ferro de duas garras
A rasgar o fundo desses mares de silêncio
(...)


T.S. Eliot, "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock",
Prefácio e tradução de João Almeida Flor, Assírio & Alvim, 1985

P.S.: O poema foi publicado pela primeira vez em 1917 no livro intitulado "Prufrock and other observations".
Imagem: Bill Brandt (1904-1983). Primeira Foto: Misty evening in Sheffield, 1937; Segunda Foto: Rainswept roofs in Sheffield, 1937.